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domingo, 14 de outubro de 2012

Sacralidade do STF

Autor(es): Teresa Cruvinel 

O processo ainda será muito mais discutido quando terminar e o mundo jurídico romper o silêncio do que agora, no fragor do aplauso

Em seus 190 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal nunca deve ter recebido tantos aplausos como agora, pelas condenações dos réus do chamado mensalão. Elas respondem ao descrédito da população nos políticos em geral e resgatam o Judiciário de sua velha conivência com os delitos da elite política. Mas essa sintonia não quer dizer que a Corte seja imune ao erro e que os condenados não tenham direito ao protesto. Nelson Hungria, ex-ministro da Casa, notável penalista citado muitas vezes pelos atuais ministros, dizia que “o Supremo tem apenas o privilégio de errar por último”. Hoje, tem-se como certo que o STF errou quando negou habeas corpus para evitar a extradição de Olga Benário, então mulher de Luís Carlos Prestes, que veio a ser executada num campo de concentração nazista na Alemanha. Uma nódoa em sua história. Na época, o STF alinhou-se ao espírito do tempo, que era de anticomunismo. Na ditadura, negou habeas corpus para evitar a expulsão, pela ditadura, do padre Vitor Miracapillo. Outro padre progressista, Reginaldo Veloso, protestou e foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Ao defendê-lo, Heleno Fragoso, um de nossos juristas mais sólidos, internacionalmente respeitado, citando a frase de Hungria, afirmou: “O Poder Judiciário pode e deve ser criticado. Estamos mal habituados a uma autêntica sacralização da Justiça, pela qual os advogados são, talvez, os maiores responsáveis. (…) É legítimo, adequado e necessário criticar a Justiça, apontando as suas mazelas, os seus erros e até os seus crimes. O sentimento de revolta e inconformismo dos que são atingidos pelas decisões é humano e compreensível”.

O julgamento alinha-se novamente com as eleições, devendo o STF decidir, na véspera do segundo turno, sobre a acusação do Ministério Publico a José Dirceu, de ser chefe de quadrilha. O processo ainda será muito mais discutido quando terminar e o mundo jurídico romper o silêncio do que agora, no fragor do aplauso. Não cabe aos jornalistas avaliar as sentenças, salvo os que tenham sólida formação jurídica. Mas duas questões dispensam o saber jurídico para serem avaliadas pelos que conhecem o funcionamento das instituições. Uma diz respeito à pretensão do STF de enquadrar a atividade política. Outra tem relação com os desdobramentos da jurisprudência inovadora que está sendo criada. Vejamos uma e outra.

Freio de arrumação
Após ser eleito presidente da Corte, o ministro-relator Joaquim Barbosa afirmou que vê o julgamento funcionar como um “freio de arrumação” na política brasileira. Disse ainda que “ter um tribunal com essa visibilidade, com todo esse apelo de mídia, como vem acontecendo, é muito importante. Esse sempre foi meu ideal. Estou muito contente que isso esteja acontecendo, ainda mais num momento em que estarei à frente do tribunal”.

Seu júbilo pessoal é compreensível, mas a pretensão de impor “um freio de arrumação” à atividade política é equivocado e colide com a cláusula pétrea da independência entre os poderes. Quem pode e deve fazer uma freada de arrumação é o Legislativo, aprovando reformas do sistema político, a começar pela questão do financiamento eleitoral. Se o Congresso não o fizer e o STF mantiver seu ímpeto, teremos julgamentos em série. Quase todos os ministros demonstram desconhecer o funcionamento do sistema político, desenhado pela Constituição, e sua cultura, enraizada na História. Estranharam que, depois das coligações eleitorais, os partidos formem coalizões parlamentares na “entressafra eleitoral”, para usar a expressão que Ayres Britto enunciou como um achado original. Ignoram que os custos da atividade política antecedem e sucedem as campanhas eleitorais. Que existe solidariedade, inclusive financeira, entre partidos aliados. Os temores da ministra Cármen Lúcia são fundados. O julgamento criminaliza a política. Amanhã, outros partidos estarão no banco dos réus. Se tivermos que “arrumar” a atividade política à custa de julgamentos e condenações em série, estamos feitos.

Perigos da mudança
Não é preciso ser jurista para deduzir que o novo modo de fazer justiça terá consequências. Como disse o jornalista Janio de Freitas em sua coluna na Folha de S.Paulo, “as deduções em excesso para fundamentar votos, por falta de elementos objetivos, deixaram em várias argumentações um ar de meias verdades”. Dirceu e Genoino foram condenados com base num conjunto de indícios que justificaram a aplicação da teoria do “domínio do fato”, por conta dos cargos que ocupavam. Para ser condenado por corrupção passiva, agora basta o sujeito receber vantagem indevida, mesmo que não se prove a contrapartida, o ato de ofício. Brindes podem ser vantagem indevida. Essas premissas agora serão seguidas pelos juízes das instâncias inferiores, como disse a O Globo o juiz Murilo Kieling: “O Supremo deu grande relevância à prova indiciária, até então considerada a mais perigosa de todas”. Tal prova é perigosa porque, afora qualquer juízo sobre as condenações dos petistas, pode permitir a manipulação dos indícios por juízes inescruplosos ou a serviço de interesses políticos ou econômicos. Foi a ex-procuradora nacional de Justiça Eliana Calmon que afirmou existirem “bandidos togados”. Imagine-se, na política dos burgos podres do interior, o que não pode derivar do conluio entre juízes e caciques políticos locais. Será muito simples eliminar inimigos.

Mas agora, a nave seguirá.
Fonte: Correio Braziliense - 14/10/2012

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