Os americanos, que criticaram a indignação dos muçulmanos diante da
blasfêmia, tiveram reações parecidas quando artistas representaram
Cristo
Os assassinatos de quatro americanos em razão de um vídeo amador
sobre Maomé exibido na internet, assim como a tentativa de matar um
cartunista dinamarquês que, em 2005, desenhou o profeta com uma bomba no
turbante, deixaram muitos americanos confusos, revoltados e assustados
com a indignação de alguns muçulmanos pela representação de suas
figuras sagradas.
A confusão decorre, em parte, do fato de que, na cultura americana,
as imagens sagradas se encontram em toda parte. Deus, Jesus, Moisés,
Buda e outras figuras semelhantes aparecem em filmes, desenhos, igrejas
e até mesmo nas paredes das salas de estar. Nós as estampamos nas
camisetas, nos para-choques dos veículos e chegamos a tatuá-las na
pele.
Entretanto, os americanos têm toda uma história de conflitos, alguns
deles mortais, em razão da exposição do sagrado. O caminho para o
debate civilizado sobre tais representações não é nem breve nem fácil.
Os EUA foram colonizados, em parte, por protestantes radicais
iconoclastas da Grã-Bretanha, que consideravam a criação e o uso de
imagens sagradas uma violação do segundo mandamento contra a
representação de imagens.
Os colonos inimigos dos católicos, de Plymouth e de Massachusetts
Bay, recusaram-se a colocar Jesus em suas igrejas e casas de oração e
apagaram as cruzes dos livros. No início dos anos 1740, as autoridades
britânicas invadiram uma comunidade indígena, no lado ocidental de
Connecticut, para interrogar missionários morávios que possuiriam um
livro que teria impressa "a imagem do nosso Salvador".
Os colonos temiam a infiltração de católicos do Canadá, controlado
pelos britânicos. Pouco depois do episódio do Tea Party de Boston (a
destruição do chá britânico pelos colonos), um pastor de Connecticut
advertiu que, se os britânicos vencessem, tirariam as Bíblias dos
colonos, que seriam obrigados a "orar para a Virgem Maria, adorar
imagens, acreditar na doutrina do purgatório e na infalibilidade do
papa".
Não eram apenas os protestantes que se opunham às imagens sagradas.
No sudoeste do país, os índios da tribo pueblo, que combatiam os
colonos espanhóis, não só queimavam e quebravam alguns crucifixos, mas
até mesmo defecavam sobre eles.
No início da república, muitos americanos evitaram retratar Jesus ou
Deus. O pintor Washington Alliston, falando em nome de muitos artistas,
em 1810, disse: "Acho essa figura muito santa e sagrada para me sentir
tentado a pegar no lápis". Um diplomata russo em visita à colônia,
Pavel Svinin, ficou impressionado com a difusão de uma outra imagem: a
de George Washington. "Todo americano acha seu dever sagrado ter um
retrato de Washington em sua casa", escreveu. "Assim como nós temos as
imagens dos santos de Deus."
Mudança. Somente no fim do século 19, as imagens de Deus e de Jesus
tornaram-se comuns nas igrejas, nas escolas, nas Bíblias e nos lares.
Diversos elementos influíram para tanto: as impressoras a vapor, os
novos canais e as estradas que traziam uma variedade de crucifixos,
imagens de Nossa Senhora e de santos.
Os protestantes começaram a produzir suas próprias imagens -
frequentemente, para atrair as crianças - e, aos poucos, sentiram-se
mais à vontade com imagens sagradas. No século 20, os EUA passaram a
exportá-las, principalmente a Cabeça de Cristo, de autoria de Warner
Sallman, de 1941, uma das mais reproduzidas no mundo inteiro.
No entanto, houve também alguma resistência. Quando Hollywood começou
a retratar Jesus em filmes, um cristão fundamentalista revoltou-se: "O
retrato da vida e dos sofrimentos do nosso Salvador, que fazem essas
instituições, é uma forma de blasfêmia".
Vernon E. Jordan Jr., um negro americano que posteriormente se tornou
presidente da National Urban League e foi assessor do presidente Bill
Clinton, lembrou que, quando representou Jesus na época em que estudava
na Universidade DePauw, em Indiana, nos anos 50, os espectadores
brancos na plateia ficaram abismados.
Na realidade, a raça tem sido um motivo constante de conflito nos
retratos americanos de Jesus. Na Filadélfia, nos anos 30, o pregador
negro F. S. Cherry entrava nas igrejas negras e, apontando para
pinturas ou estampas de Cristos brancos, gritava: "Que diabo é isso?
Ninguém sabe! Dizem que é Jesus. Essa é uma maldita mentira!"
Na época da luta pelos direitos civis, defensores do movimento Black
Power e teólogos da libertação criticaram energicamente as imagens de
figuras sagradas brancas. Um documento intitulado Declaração dos
Clérigos Negros, de 1967, exigiu "a retirada de todas as imagens que
sugerem que Deus é branco." Quando a violência racial se espalhou em
Detroit, naquele ano, negros americanos pintaram de preto os rostos
brancos dos ícones católicos.
Rejeição. Mais recentemente, a imagem da Santa Virgem Maria, do
pintor nigeriano Chris Ofili, e o Piss Christ, do artista e fotógrafo
nova-iorquino Andres Serrano, provocaram grande estardalhaço.
A imagem de Jesus crucificado de Serrano, mergulhada na urina do
próprio artista, inspirou uma verdadeira cruzada contra a National
Endowment for the Arts, no fim dos anos 80. O quadro de Ofili, que
representa uma Madonna com a pele escura com fotografias de vaginas ao
seu redor, enraiveceu o prefeito Rudolph Giuliani.
O prefeito, que afirmou equivocadamente que a imagem havia sido
coberta com fezes de elefante, quando na realidade foram usadas na base
para sustentar o quadro, tentou proibir que ela fosse exposta no Museu
de Arte do Brooklyn, em 1999. Um cristão furioso passou tinta branca
sobre o quadro.
As imagens do sagrado não causaram violência das massas nos EUA, mas
provocaram intenso conflito. Nossa capacidade de defender uma cultura
bastante saturada de reproduções do divino, em grande parte isentas de
violência, só surgiu depois de uma maciça transformação tecnológica, de
séculos de imigração e de movimentos sociais que obrigaram os
americanos a aceitar as diferenças de raça, etnia e religião. /
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
Fonte: O Estado de S. Paulo / Portal ClippingMP - 28/09/2012
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