Autor(es): » SÍLVIO RIBAS » BÁRBARA NASCIMENTO
Quem ganha até dois salários mínimos gasta 53,9% da renda com impostos embutidos ou declarados.
Governo tenta aliviar carga, mas impostos indiretos sobre quem recebe até dois mínimos é o dobro do que incide sobre os mais ricosNotíciaGráfico
A elevada carga de impostos não representa só um dos mais graves e antigos entraves ao desenvolvimento sustentável do Brasil — problema reconhecido até mesmo pelo governo em suas recentes medidas pontuais para desonerar o setor produtivo. O complexo sistema tributário também é injusto ao pesar proporcionalmente mais no bolso dos contribuintes de menor renda, que destinam ao Fisco mais da metade do que ganham, em cobranças embutidas no consumo. Essa realidade ganha contornos dramáticos ao se perceber que esse mesmo público é também o mais dependente da assistência estatal, que ajudam a custear, e cuja qualidade está muito aquém do desejável.
É o caso de Tiago Morais, 28 anos, que vive há quatro na região em Santa Luzia, no Distrito Federal, região de chácaras que se favelizou. Para os moradores, amontoados em barracos a poucos metros de um lixão, falta tudo. No local, não há rede de esgoto, distribuição de água ou de energia. "Quando chove, alaga tudo, junta lixo com esgoto e o mau cheiro é insuportável. Rato aqui é comum, tem aos montes", conta. O problema da água é resolvido com gambiarras em canos da Caesb, que alimentam cisternas. "Quem pode compra água mineral. Quem não tem condições bebe água da cisterna, que tem contato com todo esse lixo", completa.
Escassez
O problema se estende a outros serviços básicos. O posto de saúde local, segundo Tiago, ficou por muito tempo sem gestor. As escolas da região não comportam a quantidade de crianças que precisam estudar. Para resolver o problema, o Governo do Distrito Federal proporciona ônibus para levá-las a outros colégios, mais distantes. No setor de chácaras, no entanto, o ponto onde elas ficam está às margens de uma movimentada avenida, por onde passam os caminhões que levam as caçambas de lixo para o depósito. Tiago, que tem dois filhos, se preocupa com a situação. "É muito perigoso. Centenas de crianças de todas as idades atravessam correndo a rua por onde passam os caminhões em alta velocidade", reclama.
Nos últimos anos, estudos acadêmicos e de órgãos oficiais de pesquisa vêm atestando com detalhes o conhecido efeito regressivo da carga tributária brasileira: a incidência inversamente proporcional à renda e ao patrimônio do cidadão. "Segundo dados da própria Receita, quem recebe até dois salários mínimos paga o dobro em impostos indiretos sobre os produtos que consome", informa Mary Elbe Queiroz, jurista especializada em assuntos tributários. Uma prova da amplitude da cobrança indireta está na conta de luz, cuja carga o governo decidiu desonerar em 20% em média a partir de 2013.
Para ela, a injustiça do sistema se confirma quando se observa o retorno dos impostos. A má gestão dos recursos disponíveis e a gigantesca despesa com juros da dívida da União limitam a devolução dos recursos sob a forma de infraestrutura e políticas voltadas ao bem-estar social. "Nessas condições, teríamos de triplicar a atual carga tributária para oferecer serviços públicos no mesmo patamar dos países ricos", estima.
Além da necessidade de calibrar a incidência dos tributos sobre cada grupo de renda, Mary Elbe defende iniciativas para dar agilidade ao Estado e fazê-lo gastar melhor os valores que arrecada. "A burocracia é um custo a mais e absolutamente desnecessário", ilustra. Diante da precariedade daquilo que o conjunto dos três níveis de governo — federal, estaduais e municipais — oferece à população, o alto percentual da carga tributária do Brasil (36%), comparável à média das economias desenvolvidas (40%), acaba ganhando formas de disparate. A jurista entende que as autoridades deveriam perseguir cobrança mais justa de impostos e aplicação mais racional do Orçamento.
Burocracia
A burocracia não é apenas desnecessária: atrapalha o crescimento econômico, que poderia aumentar a base de contribuição e reduzir a cobrança de tributos. Estudo do Banco Mundial (Bird) mostra que de 183 países pesquisados, o Brasil figura na 126ª posição no quesito negócios e 127ª em obtenção de licenças e alvarás para construir. Para abrir uma empresa no Brasil, são necessários 120 dias e 18 procedimentos burocráticos em 12 órgãos diferentes. Na maioria das vezes, os cidadãos de menor renda são os que mais tempo perdem nas filas, seja para matricular o filho na escola, seja para tirar o documento do carro.
Para medir o grau de injustiça da regressividade da tributação sobre os assalariados, Mary Elbe lembra que o salário mínimo ideal nas contas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), capaz de cobrir todas necessidades da família, é de R$ 2,5 mil. Mas já a partir de R$ 1,6 mil, o contribuinte começa a pagar Imposto de Renda (IR).
Ela vê com bons olhos iniciativas do Congresso de desonerar a cesta básica. Está sobre a mesa da presidente Dilma Rousseff emenda à Medida Provisória (MP) 563, que prevê redução de custos de vários setores industriais. "A cesta básica já é bastante desonerada", disse o ministro da Fazenda, Guido Mantega, insinuando que proposta pode ser vetada.
Complexidade
Raul Velloso, especialista em finanças públicas, concorda em parte com o argumento do ministro Guido Mantega de que houve importantes isenções e reduções de impostos indiretos sobre os produtos de grande peso no consumo dos mais pobres. Mas em razão da complexidade da forma como são cobrados, ele sugere uma investigação mais profunda a respeito dos efeitos das desonerações. "O Brasil tem peso geral de impostos mais regressivo que países desenvolvidos, nos quais a tributação se concentra no Imposto de Renda", sublinha.
Raul Velloso, especialista em finanças públicas, concorda em parte com o argumento do ministro Guido Mantega de que houve importantes isenções e reduções de impostos indiretos sobre os produtos de grande peso no consumo dos mais pobres. Mas em razão da complexidade da forma como são cobrados, ele sugere uma investigação mais profunda a respeito dos efeitos das desonerações. "O Brasil tem peso geral de impostos mais regressivo que países desenvolvidos, nos quais a tributação se concentra no Imposto de Renda", sublinha.
Índice revela insatisfação
A distância entre os percentuais dos tributos sobre a renda do cidadão e o nível de satisfação que o Estado lhe proporciona é a melhor medida para apurar distorções. Em busca de um indicador que pudesse medir esse disparate, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) criou o Índice de Retorno de Bem-Estar à Sociedade (Irbes), comparando carga tributária com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado pelas Nações Unidas. O Brasil ficou em último lugar na lista dos 30 países de maior carga (leia quadro ao lado).
"Só haverá justiça tributária quando os impostos se concentrarem no resultado efetivo das atividades econômicas, o lucro, e não sobre a produção e o faturamento", acredita João Eloi Olenike, presidente do IBPT. Além disso, os percentuais que incidem sobre determinados produtos precisam ser revistos em favor das pessoas de menor renda. Um exemplo disso é o forno microondas, ainda classificado como artigo supérfluo, com 40% de carga de impostos. Em contraste, alguns bens de luxo são proporcionalmente menos tributados.
O aperto sobre assalariados fica claro pelas regras do Imposto de Renda (IR). "Para os que extrapolam a faixa de isenção, os valores devidos são descontados na fonte, em até 27,5%, e as possibilidades de restituição são limitadíssimas", critica o consultor Francisco Arrighi. Como saúde e educação públicas são insuficiente para cobrir a demanda e a infraestrutura têm falhas, a despesa do contribuinte para pagar esses serviços fica sem compensação. A alíquota máxima do IR é cinco vezes maior do que a aplicada às pessoas de igual nível de renda em países desenvolvidos e outros sul-americanos, de 5% em média.
Arrighi compartilha da opinião de Mary Elbe, de que a máquina pública precisa ser enxugada e ter seus ralos, como o do empreguismo, fechados. Não por acaso, 70% de tudo que o setor público gasta são apenas despesas correntes, como folha de salários e manutenção. "Enquanto na Suécia um serviço burocrático qualquer requer até quatro pessoas, no Brasil se mobilizam 22", ilustra.
Os paradoxos movem há duas décadas debates em torno da reforma tributária. Mas para o professor Fernando Rezende, da Fundação Getulio Vargas (FGV), quaisquer boas intenções esbarram na complexidade política necessária para promover grandes mudanças. Sem alterações de grande escala, o futuro de boa parte dos cidadãos continuará a depender do perfil de renda de seu berço.
Fonte: Correio Braziliense - 16/09/2012
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