Autor(es): Por Renato de Mello Jorge Silveira
O direito penal normalmente causa certo encanto aos alunos de
direito. Os mistérios da seara criminal, o romanceado mundo do crime e
do criminoso, as alusões a ele sempre frequentes em livros e filmes
tornam esse ramo da ciência jurídica sedutor, ao menos em algum momento
da vida do estudante. O destaque dado ao julgamento do mensalão - a
Ação Penal nº 470 - fez dessa realidade acadêmica uma verdade à
sociedade como um todo. O curioso é que particularidades penais começam
a ser discutidas em rodas distintas. Passa-se a questionar o
entendimento sobre muitos institutos penais. Dentre eles, destaque é
dado à chamada teoria do domínio do fato.
A autoria de determinado crime tem, necessariamente, uma umbilical
ligação com as noções de ação e resultado. Em outras palavras,
poder-se-ia afirmar que é autor de crime aquele que praticou uma ação
que gerou um resultado. Assim, é autor de um crime de homicídio aquele
agente que deu um tiro que veio a atingir uma vítima que, por sua vez,
morreu em decorrência do tiro. Nesse caso, seria percebida uma situação
do agente que tem um domínio sobre a própria ação, mostrando-se como
autor imediato desta.
Essas previsões, vistas em termos absolutamente simplistas, começam a
evidenciar mais problemas no que se chama de criminalidade complexa.
Apesar de menções iniciais do domínio do fato por autores do início do
século XX, como Hegler e Welzel, seu real desenvolvimento só se dá anos
mais tarde. Assim, Roxin inicia, no início dos anos 1960, o
questionamento de como se deveria estabelecer a responsabilidade penal
de agentes em aparatos de poder, onde o executor é instrumento do crime,
sendo este controlado por um terceiro. Esse terceiro tem o real
controle da situação, dominando o sucesso da ação criminosa. Tem ele,
sim, o real domínio do fato.
Isso tem implicações emblemáticas, pois pode chegar a ampliar
significativamente o próprio conceito de responsabilidade penal. Ao se
estabelecer a distinção entre autor e executor, intui-se a existência
de uma autoria mediata, que se utiliza de outras pessoas. Esse homem
por detrás dominaria, assim, a vontade do crime. Teria ele o domínio
real de determinada situação de organização.
Existiriam outras modalidades de atribuição de autoria, como aqueles
que detém o domínio funcional do fato - situação em que existe uma
decisão conjunta de prática de determinado ato, entre outras. Será, no
entanto, que essa ampliação do conceito de autor poderia ser aplicada
indistintamente?
Por óbvio, o direito penal não é unidirecional. Ele convive com
várias respostas a serem dadas conforme o problema colocado. A opção
por seu entendimento no caso em debate tem um propósito bastante claro,
qual seja o de estipulação de responsabilidade em uma estrutura
hierarquizada de poder onde não necessariamente se mostra percebida a
atuação de determinados agentes.
Existe um certo risco na utilização desmedida da teoria do domínio
do fato, pois ela aumenta a possibilidade de resposta penal,
principalmente ao se caminhar para opções postas por algumas de suas
declinações, como faz Jakobs. Ao se chegar a alguns extremos, seria de
se considerar que até um partícipe de menor importância deteria, em
certa medida, o domínio do fato, podendo-lhe, assim, ser atribuída
responsabilidade como se autor fosse.
Percebe-se, pois, um debate bastante significativo quanto à
abrangência de sua utilização, por exemplo, em situações de cunho
mafioso ou notadamente empresariais. Embora alguns autores afirmem que
diversas situações poderiam ser classificadas como aparato de poder,
vê-se, hoje, considerável crítica a tal colocação, principalmente
porque em muitos casos a obediência hierárquica não se dá em termos
automáticos. Verificam-se, pois, mais dúvidas que certezas.
A sua aplicação é absolutamente viável no direito brasileiro.
Deve-se, contudo, ter em mente qual o seu viés e contorno, e qual a
vertente dogmática que se está a utilizar, pois a questão é mais
complexa do que mera rotulagem. Ela incidirá, sim, como precedente para
uma vasta gama de situações.
Renato de Mello Jorge Silveira é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
Fonte: Valor Econômico - 27/09/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário
comente