José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
De quem são as frutas de cemitério? Você chuparia uma
laranja de uma laranjeira que há no Cemitério São Paulo? Pois, eu não! E
uma pitanga da pitangueira que frutifica todos os anos sobre um dos
túmulos do Cemitério dos Protestantes, anexo ao Cemitério da Consolação?
Eu, nem pensando! E uma amora de uma amoreira do Araçá? Nem morto! No
São Paulo, os coveiros, hoje denominados, se não me engano, técnicos de
sepultamento, quando podem, colhem as frutas e as dão a moradores de
rua, que sempre os há ali por perto.
Historicamente, os pobres, em nossa sociedade, são herdeiros do que
sobrou dos defuntos. E isso não é apenas por caridade. De um lado, é por
repulsa e medo. De outro lado, para demonstrar ao Juiz Supremo, que o
falecido "era assim com os pobres", "era um pai da pobreza", testemunho
em favor do alívio dos pecados cometidos. Vai, que pega.
Esta sociedade tem altíssimo preconceito contra tudo que foi de
defunto. Menos seu dinheiro ou o que de seu em dinheiro possa ser
convertido. É compreensível que se queira descartar tudo aquilo que lhe
esteve ligado ao corpo, principalmente roupas e calçados. Às vezes,
outros objetos relacionados com o corpo do defunto são estigmatizados.
Já me tocou dormir, num convento em que era hóspede, em Goiânia, na
mesma cama em que dormira, na noite anterior, um padre ali residente e
que naquele dia falecera em desastre de automóvel. Tudo porque os
parentes, vindos do interior para o velório na capela da casa e para o
enterro, se recusaram a dormir no mesmo leito em que dormira tão
recentemente o falecido. Ora, o defunto era deles, não meu! Pois,
mudaram-me para lá, quase à força, sob argumento de que fora ele,
durante a vida, um santo homem, o que eu não duvido. Mas, por sim ou por
não, dormi de luz acesa e com um olho aberto. Nunca se sabe. Vai que
ele voltasse para reclamar a cama que fora dele? Eu, hein?
O que era do morto ao morto pertence, já ouvi um coveiro dizer à
beira de um túmulo, numa disputa para saber se a morta podia ou não
levar para a cova o rosário que lhe enrolaram nas mãos. Há tribos
indígenas, no Brasil, que ainda hoje sepultam com o morto tudo que foi
dele, até máquina de costura. O que era do morto se torna intocável para
evitar a contaminação da morte: a morte chama a morte, dizem os
entendidos.
Os pomares de cemitério são formados pelos pássaros, que distribuem
indiscriminadamente as sementes das frutas que comeram por aí,
regenerando, em proveito próprio, espontâneas plantações frutíferas.
Intocáveis, as frutas de cemitério pertencem, na verdade, aos
passarinhos. No Cemitério do Redemptor, protestante, em frente ao Araçá,
não só fruteiras, mas também bebedouros estão espalhados pelas árvores
para atrair os pássaros e restabelecer um nexo de alegria entre quem foi
e quem ficou.
Achei interessante, este assunto, e sempre me questionei sobre as frutas do Cemitério, lembro que em Natal, quando havia mortandade infantil constantes, há alguns anos atrás, "graças a Deus e aos governantes, isso já foi superado", Um senhor, parente meu, apanhava do cajueiro do cemitério alguns cajus, para tiragosto de cachaça.
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