Antropólogo da UnB passa seis meses convivendo com pesquisadores e
militares brasileiros na Antártida e produz estudo sobre as relações
humanas no extremo sul do planeta
Marcela Ulhoa
Quando o assunto é ciência na Antártida, é comum que se
pense em estudos na área da oceanografia, biologia ou climatologia.
Entretanto, nos seis meses que Luís Guilherme Resende passou no
continente gelado, sua pesquisa de doutorado pela Universidade de
Brasília (UnB) teve um foco diferente. Resende foi o primeiro
antropólogo a fazer um estudo etnográfico da presença humana no
ambiente de condições climáticas extremas.
"Para a antropologia, a ocupação da Antártida é
interessante porque não passa por uma estratégia de dominação. A
colonização da região foi um domínio ambiental em favor dos desejos
humanos, de sua curiosidade", explica Resende. Juridicamente, a área
está sujeita ao Tratado da Antártida, pelo qual as nações que
reivindicam territórios no continente (Argentina, Austrália, Chile,
França, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido) suspendem os pedidos,
deixando o continente livre para estudos. Nas bases brasileiras, a
marinha tem uma posição hierárquica mais alta, justificada pela
necessidade de segurança. "É nesse ponto que a lógica se inverte. Os
militares dominam aspectos que não têm nada a ver com segurança. Toda a
administração passa por eles", conta o antropólogo. Os militares são
enviados à Antártida em missão que dura um ano. Passado esse período,
uma nova equipe da Marinha Brasileira chega. Para afinar a convivência
entre civis e militares, todos passam por treinamento no Brasil.
O convívio entre civis, militares e alpinistas
(profissionais essenciais nos acampamentos) costuma ser tranquilo. "De
um modo geral, a relação é muito boa. Pelo que eu já pude conversar com
pessoas de outras estações, eu acredito que o fato de haver regras
bem estabelecidas contribui para que haja uma convivência saudável",
defende o capitão-de-fragata Alexey Bobroff Daros, chefe do Grupo-Base
2010/2011 da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). Para
realizar seu trabalho, Luís Guilherme Resende foi a campo três vezes
entre 2010 e 2012. Ele observou a rotina e a convivência entre os
diferentes atores na estação, nos navios e nos dois acampamentos
brasileiros. "Nessa região, pesquisar é também habitar, mesmo que
temporariamente. Há pouca distinção entre o mundo de trabalho e a vida
cotidiana", diz. Confira a seguir alguns dos pontos que mais chamaram a
atenção do pesquisador.
É o navio que articula todas as formas de estar na
Antártica. "Além de ser o meio de acesso aos acampamentos e à Estação,
ele é o laboratório e a morada de alguns pesquisadores, como os
oceonógrafos, que ficam quase sempre embarcados." Luís Guilherme
Resende conta que esse também é o local em que as regras militares,
para os civis, se mostram mais rígidas. Isso porque os navios
brasileiros que servem na Antártida — o Ary Rongel e o Almirante
Maximiano — pertencem à Marinha do Brasil. "O navio é o local de maior
choque para os civis, pois eles têm de se adequar ao ambiente militar.
Tem hora para tudo, e a palavra final é sempre do almirante."
Às 5h (o horário seguido lá é o de Brasília),
pesquisadores e militares são despertados pelo toque da alvorada,
ritmo que marca o início das atividades do dia. No começo de todas as
manhãs, as condições meteorológicas são transmitidas via rádio. Esse
momento é crucial para o trabalho, pois, a equipe só pode definir as
ações a serem desempenhadas de acordo com o clima. "Para avistar
baleias, por exemplo, é necessário ter boas condições de navegação",
conta Resende.
Para os civis, o navio é como um hotel, já que eles não
fazem os serviços gerais de manutenção e limpeza. Além disso, há o
conforto do banho quente e da comida preparada por cozinheiros. As
refeições são servidas em locais diferentes da embarcação de acordo
com as patentes. Os cientistas comem separados dos marinheiros. Os
alojamentos também são separados: oficiais com oficiais ou cientistas,
marinheiros com marinheiros. Há um local público denominado Praça
D"Armas, onde se pode cantar no caraoquê, conversar ou realizar qualquer
outra atividade de entretenimento. Esse espaço, entretanto, é
exclusivo para oficiais e cientistas.
Os cientistas que deixam o conforto dos navios e da estação
para dormir em barracas são aqueles que precisam realizar sua coleta
de dados em locais afastados das bases. "A quantidade de pontos fixos
que um país mantém na Antártida depende do quanto ele investe em
pesquisa na região. Quanto maiores forem os recursos, melhor será a
logística", avalia o pesquisador. A vida nas tendas é dura. A comida é
enlatada. Não há cozinheiro, muito menos banho quente. As notícias
chegam via rádio diariamente às 21h, quando acampamentos e estações de
rádio trocam informações. "É quando sabemos o resultado do Fla-Flu",
brinca Resende. Mas às vezes as notícias não são boas. "Quando estava
acampado, nós recebemos um alerta de tsunami por causa do terremoto no
Chile." O antropólogo conta que não havia muito o que fazer, já que o
navio mais próximo estava a 10 horas dali.
O acampamento é o único local em que não há presença dos
militares. Os alpinistas são os responsáveis por manter a segurança. "Só
o Brasil obriga a ter alpinistas em seus acampamentos. Como a marinha
não tem experiência em terra e sabe lidar pouco com a neve, eles
chamaram o Clube Alpino Paulista para auxiliar nas missões." Por isso,
eles têm permissão para desativar o acampamento caso seja necessário.
Esses profissionais também ajudam alguns cientistas na coleta de
dados, como os paleoclimatólogos, que precisavam subir as montanhas
para realizar seus estudos.
"No acampamento, você não está confinado. Ao mesmo tempo
que precisa lidar com situações difíceis, você tem a sensação do
sublime, da sua pequenez diante da natureza", finaliza o especialista
da UnB.
A Estação Antártica Comandante Ferraz, atingida por um
incêndio no início do ano, foi a casa de Luís Guilherme Resende por três
meses. Ali, os civis têm de participar das atividades de limpeza e
organização. "Todos os dias, é formada uma equipe de manutenção
composta por um militar, um civil do arsenal da marinha e um civil
pesquisador. O grupo fica responsável por fazer o pão do café da
manhã, limpar a cozinha, pôr a mesa do café, lavar a louça, retirar o
lixo...", conta. "Nesse dia, cientista não é cientista", esclarece o
antropólogo.
Já os militares que trabalham na estação raramente
desempenham as funções para as quais foram treinados. Na base, um
mergulhador de combate, por exemplo, dificilmente vai atuar em sua
função original. Mesmo assim, ele é valorizado. "Consertar um
encanamento é tão importante quanto implantar uma bomba, porque aquela
é a missão dele, tornar as condições favoráveis à pesquisa."
A noite na estação é usada para relaxar. Todos se reúnem
para ver filmes, jogar videogame ou ver novelas. É possível também
apreciar cervejas e vinhos. O abastecimento de produtos é feito por
navio ou por carga lançada de paraquedas.
Fonte: Correio Braziliense
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