Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil

São
Paulo – A família de Norberto Nehring, economista e professor da
Universidade de São Paulo (USP) que foi assassinado durante a ditadura
militar no país, pediu hoje (27) à Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo que seja providenciada uma nova certidão de óbito de Nehring. A
família pede que o documento aponte que ele morreu sob tortura, por
lesões e maus-tratos e que seja definido o local em que a morte
ocorreu.
Atualmente, a certidão de óbito de Nehring, que já sofreu uma
modificação a pedido da família, aponta que ele morreu “por causas não
naturais”. A primeira certidão do economista, que morreu no dia 20 de
abril de 1970, informava que ele tinha se suicidado com uma gravata em
um hotel.
“O processo histórico é algo que se faz de pequenas peças. Uma
pecinha na revisão desse processo já tivemos, que foi a primeira revisão
do atestado de óbito que, de suicídio, passou a responsabilizar o
Estado brasileiro e falou do domínio físico do meu pai, dizendo que ele
estava sob responsabilidade de agentes do Estado. A questão é muito
complexa porque nunca existiu tortura oficialmente no Brasil. Não há
nenhum laudo oficial falando em tortura”, disse a cineasta Marta
Nehring, filha de Norberto.
“Esse reconhecimento é para limpar a nossa história. E a história se
limpa com esses pequenos registros. Um atestado de óbito refeito é uma
pecinha que pode parecer pequena, mas é parte do grande movimento
histórico para limparmos nosso passado”, acrescentou.

Norberto
era militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Em janeiro de
1969, policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops)
cercaram a casa onde ele vivia com a mulher, Maria Lygia Quartim de
Moraes, e o levaram. Ele ficou dez dias na carceragem, onde foi
interrogado e torturado. Como seu grau de envolvimento com a guerrilha
ainda não era de conhecimento dos agentes do Dops, ele foi liberado para
comparecer ao aniversário de 5 anos da filha, Marta Nehring. Logo
depois da festa, fugiu para Cuba.
Maria Lygia e a filha foram depois encontrá-lo em Cuba. Nos
primeiros meses de 1970, ele decidiu voltar ao Brasil, enquanto a esposa
e a filha foram para a França. Antes de chegar ao país, Norberto ficou
um período de 40 dias em Praga (capital da República Checa) e, de lá,
mandou cinco cartas para Maria Lygia. Logo depois de ter desembarcado no
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão – Antonio Carlos
Jobim, no Rio de Janeiro, ele foi morto. As circunstâncias de sua morte
nunca foram esclarecidas, mas a família acredita que ele foi levado do
aeroporto por policiais.
“Nos 40 dias em que ele ficou em Praga, a gente se correspondia.
Foram cinco cartas [disse ela, chorando] no período. A última é do dia
10 de abril e, no dia 24, ele estava morto”, contou Maria Lygia que só
voltou ao país cinco anos depois.

Além
da mudança na certidão, a família pede também que a comissão investigue
e aponte quem foram os torturadores e assassinos de Nehring. “Todo
mundo sabe que a justiça de transição tem três pilares: a reparação, a
reconstituição e a apuração e punição. Aqui no Brasil isso se limita à
questão da reparação financeira, mas não é o que eu quero. Isso é pouco.
O que eu quero é a verdade e acho também que o Brasil precisa dessas
verdades”, disse Maria Lygia.
A audiência da comissão, feita na tarde de hoje (27) na Assembleia
Legislativa de São Paulo, foi acompanhada pela ministra Eleonora
Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República, pelo jornalista Juca Kfouri (primo de Maria Lygia e padrinho
de Marta) e pelo ex-ministro de Direitos Humanos e membro da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados
Americanos (OEA), Paulo Vannuchi.
Na audiência, Juca Kfouri se emocionou ao lembrar de sua militância
na ALN e da culpa que diz ter carregado por muitos anos por não ter
ajudado a tirar Norberto do país. “Ele não sabia, e nem podia saber,
que, naquela altura da minha vida, eu, de alguma maneira, em um sistema
de auxílio da ALN, já tinha posto duas pessoas para fora do Brasil. E eu
não me conformo em ele não ter me procurado. Durante muito tempo após a
morte dele, eu pensava: 'se ele me procurasse a gente certamente
tiraria ele daqui'. Não me conformo”, disse.

A
ministra disse ter participado da audiência como amiga da família e
também como ex-militante e presa política. “Cada vez mais essas sessões
me dão a certeza de que seguir em frente é fundamental, é correto, é
importante. A homenagem ao Norberto é mais do que merecida. Sou muita
amiga da Ia [Maria Lygia]. A vida do Norberto, sem dúvida nenhuma, é um
exemplo para a nova geração. Tenho certeza de que todas as comissões, as
estaduais e a federal, chegarão a um relatório que vão mostrar a
verdade e aí vão encaminhar para os devidos procedimentos futuros e
necessários”, disse.
Para o jornalista Juca Kfouri, o primeiro passo será dado ao se
apontar os nomes dos torturadores e assassinados daquele período.
“Depois, à medida que a sociedade amadureça, talvez seja possível dizer:
'essas pessoas [torturadores] não podem ficar na rua'”.
De forma bastante emocionada, a filha, as duas netas [Sofia e Cléo] e
a viúva de Norberto classificaram a audiência de hoje como “uma
cerimônia de adeus”. “Assim como a minha mãe [Marta], também perdi o meu
pai muito cedo, mas eu tinha o dobro da idade dela quando isso
aconteceu. E é muito difícil você não poder passar com o seu pai esses
momentos de adolescência, do nascimento de filhos, que ainda vou ter.
Mas teve uma diferença: eu tive a oportunidade de me despedir
simbolicamente do corpo do meu pai, por meio dos rituais. Mas isso foi
algo que a minha mãe nunca teve oportunidade de fazer. Até hoje. Por
isso, hoje é o dia em que ela vai conseguir se despedir simbolicamente
do corpo dele, já que ela nunca vai se despedir da alma dele. Isso era
um peso para ela até hoje”, disse Sofia Nehring, neta de Norberto,
durante a audiência.
Marta, que dirigiu o filme
15 Filhos - que mostra a
história de 15 pessoas que eram crianças durante a ditadura, filhos de
militantes políticos que morreram ou foram torturados no regime, disse
que a história de seu pai é um exemplo de que a “luta vale a pena”.
“Hoje conseguimos enterrar o meu pai, mas isso não significa que acabou.
Ainda há a busca e a condenação dos culpados”, disse.
Edição: Fábio Massalli
Fonte: Agência Brasil