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domingo, 1 de março de 2015

O Rio aos 450 anos: Historiadores apontam perdas e conquistas

Hoje às 08h00 - Atualizada hoje às 11h27


Rio de Janeiro, a órfã criada por padrastos dos mais terríveis em alguns momentos, a paixão que faz sofrer, a ilha da fantasia dos governantes e da tortura para os moradores, rico culturalmente mas excludente como cidade, a cidade global que agora resgata sua história. O JB consultou alguns dos historiadores que mais conhecem o Rio de Janeiro, para que tentassem definir o caminho percorrido até hoje pela cidade que completa 450 anos neste domingo (27). Eles falam da cidade marginalizada e também da esquecida, no caso, o Rio de Janeiro dos indígenas. Ainda há motivos para comemorar, no entanto.


"Minha irmã acaba de chegar da rua (sete e meia da noite) e me traz a notícia de que um grande prédio em construção no Largo do Rossio acaba de desabar, matando quarenta operários. O antigo prédio era uma arapuca colonial, mas que, apesar da transformação, de ter tido as paredes eventradas, resistia impavidamente. O novo ia ser uma brutalidade americana, de seis andares, dividido em quartos, para ser hotel: Hotel New York (que nome!), um pombal, ou melhor: uma cabeça-de-porco. Somos de uma estupidez formidável. O Rio não precisa de semelhantes edifícios. Eles são desproporcionados com as nossas necessidades e com a população que temos", dizia Lima Barreto em relato de 7 de junho de 1917. O romancista e cronista nasceu na cidade em 1881, onde também morreu, em 1922.


O Rio de Janeiro sempre passou por muitas mudanças polêmicas, como agora. Armelle Enders, professora de história da Universidade de Paris - IV - Sorbonneé, é uma entusiasta pesquisadora da capital fluminense. Ela relança a obra "História do Rio de Janeiro", atualizada, também neste domingo, com algumas páginas a mais e levando em conta o período atual. Para ela, a recuperação do Centro e da zona portuária é uma verdadeira reconquista da história do Rio de Janeiro e do coração da cidade, por resgatar um passado doloroso mas consubstancial, o ponto de chegada de 2 milhões de escravos africanos que transitaram pelos cais, pelo Valongo, e a "pequena Africa" do morro da Conceição, "o Rio de Janeiro da resistência africana". Ela destaca ainda que a queda da perimetral embeleza a Praça XV. Como o Rio sempre foi uma cidade global justamente pelo fato de ser um porto, faz sentido recuperar esta história.


"Tudo isso mostra que a valorização do patrimônio é hoje em dia considerado como moderno, quando, antigamente, a 'modernidade' significava destruir e derrubar o que era considerado como velho, arcaico, atrasado. Quem sabe se o próximo prefeito do Rio de Janeiro não vai cogitar em restaurar o morro do Castelo, sua igreja e seu colégio jesuíta? Essa brincadeira é para dizer que recuperação do patrimônio, como a memória, é seletiva. Existe um Rio de Janeiro fantasma, como, por exemplo, o Rio de Janeiro indígena, que anda muito esquecido", levanta a historiadora.


O arquiteto e professor Nireu Cavalcanti, uma das maiores autoridades na história do Rio de Janeiro, por sua vez, desaprova as alterações atuais. Para ele, as reformas espalhadas por toda a cidade são um absurdo. Um exemplo é que a Perimetral poderia ter sido derrubada apenas quando as obras estivessem prontas, ele sugere. O que falta, indica, assim como em épocas anteriores, é planejamento. "Isso é resultado da falta de planejamento e de respeito ao cidadão, resultado dessa visão 'megalômica'. Nós vivemos nessa ilha da fantasia, você planeja sem prever quais são as consequências da sua obra. É uma ilha da fantasia para o governo, mas para nós é uma ilha da tortura."


Ele lembra ainda que "a cidade cultural" é o caos, destacando o tratamento dado ao acervo histórico do país. "Qual é o plano, o grande projeto cultural, para os nossos museus arquivos e bibliotecas? Isso é o que permite que o arquivo do Itamaraty, por exemplo, esteja fechado há anos."Nós tivemos momentos de padrastos e madrastas dos mais terríveis, pessoas que se aproveitaram da cidade


Cavalcanti não deixa de acreditar, entretanto, na importância de comemorar o aniversário desta cidade, que, aos dois anos, perdeu seu idealizador, Estácio de Sá. Em 1565, com um grupo de índios, ele fundou o Rio de Janeiro. O professor salienta que é obrigação dos cariocas entenderem a história de onde vivem. 


"A primeira grande característica do Rio de Janeiro é que ele é uma cidade que nasceu e, quando tinha dois anos, o pai morreu. Estácio de Sá morreu antes de ver concretizado seu sonho de fazer do Rio o grande empório da América, quiçá do mundo. Não tivemos a oportunidade do pai criar essa criança. Nós tivemos momentos de padrastos e madrastas dos mais terríveis, pessoas que aproveitaram para se beneficiarem da cidade."


A segunda característica que o Rio de Janeiro ganhou, aponta Cavalcanti, é o fato de ter sido construído a partir da destruição de duas culturas, a indígena, os que mais perderam com o desenvolvimento do Rio, e a dos escravos africanos. 


Ele ressalta ainda que, após a mudança de capital para Brasília, o que foi muito ruim para a cidade, quando ela estava se preparando para efetivamente ter estrutura de cidade-Estado, como a Grécia, veio o golpe militar. "Nós perdemos o sentido de planejamento. Para mim, o último prefeito que planejou foi Pedro Ernesto, [nos anos 1930], foi o primeiro prefeito a subir a favela, de São Carlos, no Estácio, terminou preso. (...) Hoje eu diria que nós chegamos ao ápice do absurdo", diz o professor. De acordo com ele, o pior momento do Rio de Janeiro vem desde os anos 1990, com a perda do planejamento global.


Foi na década de 1990, inclusive, que o Rio de Janeiro ficou marcado mundialmente pela pobreza e a violência. A historiadora Armelle Enders lembra que, na época, não se fazia muita coisa para combater essa imagem. A situação mudou um pouco com a chegada da Copa e da Olimpíada, com ações "cercadas por muita propaganda e comunicação". "No início, parecia dar certo, a violência, pelo menos, nos bairros 'nobres', diminuía. O lado escuro das 'pacificações', todavia, logo apareceu : a 'nova' polícia acabou sendo a mesma de sempre. O tráfico se espalhou para outros lugares e reconquista, aos poucos, seus redutos. Aparentemente, essa política serviu para poupar o cartão postal, mas não resolveu fundamentalmente o problema", acredita Armelle.


Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/UFRJ, indica que, para falar do Rio de Janeiro, é preciso encarar dois pontos de vista. Culturalmente, as diferenças sociais produzem uma bagagem extremamente rica, significativa. Como cidade, entretanto, o Rio de Janeiro é aquele que exclui, que segrega, que tem um transporte público caro, que maltrata a sua população periférica, marginal. "A contradição entre esses pontos é o que a gente vive no nosso cotidiano."


Pesquisadora da música e lazer popular no Rio de Janeiro, Adriana diz que uma marca muito distintiva da capital fluminense é o fato da periferia estar no centro da cidade, e não apartada geograficamente, muitas estão encravadas nas regiões mais valorizadas. "Essa tentativa de expulsar a pobreza para suas margens nunca deu certo, entre nós. E felizmente, porque eu acho que o que tem de melhor na cultura do Rio de Janeiro vem dessas periferias, que é a música popular, que são as danças, os festejos, os folguedos, aquelas tradições culturais que vieram das áreas rurais, e foram ressignificadas. O que tem de mais criativo, de mais vanguardista, é justamente o que é produzido enquanto arte, enquanto cultura, nessas regiões da cidade."


O funk do Rio de Janeiro, então, fala muito sobre o Rio, e traz um mapa às vezes esquecido. Ele revela a grande desigualdade social, mas também a capacidade criativa dessa população pobre. "É uma coisa impressionante, como que as pessoas vivendo em condições que nem o essencial está garantido como moradia, alimentação correta, saneamento básico, saúde, educação, conseguem, a despeito disso, se divertir, procurar ser feliz, criar, produzir arte. Isso é muito significativo."


Adriana acredita que, politicamente, todas as conquistas do Rio de Janeiro foram arrancadas. Mas podemos comemorar, sim, pelas lutas populares, a criatividade popular daqueles que foram tradicionalmente marginalizados, que sofreram processo de exclusão, não se resignaram a esse papel, e agora também são protagonistas.


O historiador e professor Milton Teixeira lembra que a cidade nasceu no meio de uma guerra, e que essa guerra continua. "Todo o dia nós perdemos ou conquistamos uma parte da nossa cidade, é uma batalha constante. Estácio de Sá deu a vida para que o Rio de Janeiro pudesse sobreviver, e nós estamos aí."


O Rio de Janeiro deixou de ser capital do país há décadas, mas a cidade ainda funciona como uma espécie de centro de debates e cultura para o país. Acadêmicos que acompanham o desenvolvimento econômico da cidade destacam que este, inclusive, trata-se de um problema - maior preocupação com um olhar para o Brasil e o mundo do que para si.
Procissão marítima diante do hospital dos Lázaros
Procissão marítima diante do hospital dos Lázaros
Armélle Enders explica que, desde a Primeira República, São Paulo competiu com o Rio de Janeiro como capital cultural e intelectual do Brasil. São Paulo lucrou, de uma certa forma, na época de Vargas, por não ser capital política e ficar mais distante de um poder federal então muito "intrusivo". As elites paulistas compensaram o declínio político com investimentos na ciência, universidade e cultura. A partir da era Vargas, no entanto, o Rio de Janeiro conseguiu impor sua cultura popular como marca nacional e, nos anos 1960, ganhou a bossa nova como modo carioca e brasileiro de se viver. O Rio, porém, continua sendo a "vitrine" do Brasil, por bem ou mal, no mundo. "É verdade que existe essa tensão entre a vocação nacional e internacional do Rio de Janeiro e seu estatuto de capital estadual."

O mais curioso ao longo desta história, para Enders, é a ladeira da Misericórdia, "alguns metros que não levam para nenhum lugar", pois o morro do Castelo, o sítio da segunda fundação da cidade, foi derrubado na década de 1920. "A ladeira é o que sobra da rua mais antiga do Rio. E não leva a nada".

Para Milton Teixeira, o Rio de Janeiro se tornou o que Estácio de Sá previu, empório das riquezas do mundo, mas também uma cidade linda, maravilhosa, que encanta a nossa alma, "uma mulher que nos faz sofrer, mas continuamos apaixonados".

"(...) Sou homem da cidade, nasci, criei-me e eduquei-me no Rio de Janeiro; e, nele, em que se encontra gente de todo o Brasil, vale a pena fazer um trabalho destes, em que se mostre que a nossa cidade não é só a capital política do país, mas também a espiritual, onde se vêm resumir todas as mágoas, todos os sonhos, todas as dores dos brasileiros, revelado tudo isso na sua arte anônima e popular (...)", dizia Lima Barreto sobre sua motivação para obter narrações e contos nesta cidade.

Fonte: Jornal do Brasil (digital)

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